Por: Andrei de Albuquerque*
Pois o pensamento doentio devora a carne do corpo mais do que a febre ou
a tuberculose
Guy de Maupassant
O atual momento de esplendor econômico
tupiniquim infla o peito e envaidece; gera, também, o sentimento de uma suposta
grandiosidade secular que permanecia adormecida, mas que agora ganha vigor e
concretude.Natural que a “brasileirada” e seu subgrupo, o povo da terra do saroio, confundam avanço econômico e estrutural com desenvolvimento
educacional e humanístico. E no afã pela concretização dessa suposta
grandiosidade –– mais futebolística e econômica que de outra ordem –– fica um
povo reduzido ao que Tobias Barreto denominou de “estado de mendicidade
espiritual”, referindo-se ao atraso cultural tupiniquim.
Praias encantadoras e coqueiros
verdejantes servem de aprazível cenário para a débil mentalidade tropical que
despreza a elevação cultural, mas que alimenta o ranço de republiqueta
exportadora de produtos primários, permanecendo, porém, aquém dos países
verdadeiramente desenvolvidos. Em vários ensaios o grande jurista e filósofo da
terra do saroio, Tobias Barreto, emitia, em tom de desabafo, suas impressões sobre o
atávico atraso nacional; em um ensaio filosófico intitulado “ Sobre a filosofia
do inconsciente” abre espaço para uma diatribe que diverge do tema, dizendo: “
O Brasil padece de uma espécie de prisão de cérebro: tem peçonha no miolo. É
preciso sujeitar-se à dolorosa operação de crítica de si mesmo, do
desapego, do desdém, e até do asco de si mesmo, a fim de conseguir uma cura
radical.” Além do desabafo raivoso, há a importante observação de Tobias
Barreto para a necessidade de elaboração histórica e cultural como passo
fundamental para o desenvolvimento de uma nação; indica ainda que o mal-estar
cultural não deve ser negligenciado nem varrido para debaixo do tapete da
história. Tobias e Sílvio Romero, polemistas irascíveis, lutavam –– eivados de preceitos
positivistas –– contra a intelectualidade tropical “festiva” que proclamava a
grandiosidade nacional; um exemplo se dá quando Tobias Barreto, em outro
ensaio, defende o livro “ A filosofia no Brasil”, de Sílvio Romero, contra as
posições do crítico Sousa Bandeira Filho que julgava desnecessário debater
questões referentes ao atraso nacional.
Talvez Tobias Barreto e Sílvio Romero,
como intelectuais oriundos da província mais remota e isolada, tenham
observado que o atraso pronvinciano seria corolário do retardo nacional.
Contudo, suas biografias e polêmicas indicam que ambos, provavelmente,
acreditavam que determinada modernização, ancorada em preceitos positivistas,
poderia tornar o país grandioso.O isolamento permite certa distância que facilita
a observação de um fato, porque dificilmente se pode tomar uma opinião mais
consistente quando se está imerso em determinado acontecimento. Desse modo, o
isolamento próprio ao microcosmo da província gera certo ceticismo ou um
preciosismo inconteste que se regala no “ narcisismo das pequenas diferenças”,
exaltando as características locais de modo irreal; –– por exemplo, na
terra do saroio, há a
repetição a torto e a direito da falaciosa qualidade de vida de sua capital.
A mentalidade provinciana entende sua
cultura como produto exótico a ser explorado pelo turismo ligeiro ao invés de
considerá-la fato consistente para o desenvolvimento de seu povo. Outrossim, a
mentalidade provinciana entende as artes no plano do diletantismo, do
amadorismo, ou como apanágio da história local que sempre deve ser enaltecida.
O fascínio provinciano é captado pelo progresso meramente estrutural, pelos
títulos, pelo “ discurso de bacharel”, pela designação de doutor que tanto
inebria o brasileiro. Machado de Assis aborda esse fascínio tropical pelos
títulos e honrarias em “ Teoria do medalhão”; pequena narrativa na qual
descreve um pai que ensina o filho a se dar bem na vida, cultivando a bajulação
e a falta de originalidade; orienta, ainda, que evite ter ideias, pois elas podem
se tornar um obstáculo à ascensão social. Nesse sentido, o crítico literário
sergipano João Ribeiro –– em um ensaio sobre um romance de Lima Barreto ––
declarou, em meados do século passado, que o Brasil era o país do “arrivismo” e
do culto à falta de originalidade –– meios úteis para se alcançar o triunfo nos
trópicos.
Algo de sumamente revelador, acerca do
caráter tropical e provinciano, é delineado nessa curta narrativa machadiana;
nela está descrita a mesquinhez provinciana ante o incentivo ao novo e à
inventividade característica de nações avançadas; também nela está descrito o
encantamento por títulos, cargos etc. Nelson Rodrigues insistia no júbilo
que o brasileiro sente ao ser chamado de doutor –– êxtase da ordem de um
título nobiliárquico. Possivelmente o que Nelson e Machado apontavam no caráter
tropical seja visível, e risível, no microcosmo provinciano onde há a
notória patetice das aspirações medianas que sufocam a inventividade. O “
estado de mendicidade espiritual” tupiniquim encontra no isolamento –– próprio
ao rincão do saroio –– matizes mais acentuados
Esse “ estado mendicidade espiritual”
proporciona espaço a um ímpeto desenvolvimentista apenas atrelado à forma e ao
avanço estrutural, desdenhando a consideração pelo avanço educacional e
humanístico. O sentimento de grandiosidade que infla o peito e o
orgulho da “brasileirada” acolhe bem esse ímpeto
desenvolvimentista.
Porém, Tobias Barreto, o caga-raiva genial, apontou a
necessidade de elaboração do atraso cultural que vai além do mero ataque à
produção cultural local como forma de escárnio –– ataque que mascara certo
revanchismo falhado, frustrado. Talvez a “ cura radical”, proposta por Tobias
Barreto, seja possível pelo ato de digerir tradições e “maldições indígenas” em
novas produções culturais, evitando o perigoso e imbecilizante desconhecimento
de lacunas e mazelas na história de um povo.
*psicanalista, psicólogo, membro do Instituto Freudiano de psicanálise (IFP- SE), coordenador no Grupo Despertar(DESO) de dependência química, colunista do Cinform Online (site) de julho de 2010 a dezembro de 2011.
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