segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O bunker provinciano



Por: Andrei de Albuquerque*

Pois o pensamento doentio devora a carne do corpo mais do que a febre ou a tuberculose
Guy de Maupassant

                  O atual momento de esplendor econômico tupiniquim infla o peito e envaidece; gera, também, o sentimento de uma suposta grandiosidade secular que permanecia adormecida, mas que agora ganha vigor e concretude.Natural que a “brasileirada” e seu subgrupo, o povo da terra do saroio, confundam avanço econômico e estrutural com desenvolvimento educacional e humanístico. E no afã pela concretização dessa  suposta grandiosidade –– mais futebolística e econômica que de outra ordem –– fica um povo reduzido ao que Tobias Barreto denominou de “estado de mendicidade espiritual”, referindo-se ao atraso cultural tupiniquim.

                     Praias encantadoras e coqueiros verdejantes servem de aprazível cenário para a débil mentalidade tropical que despreza a elevação cultural, mas que alimenta o ranço de republiqueta exportadora de produtos primários, permanecendo, porém, aquém dos países verdadeiramente desenvolvidos. Em vários ensaios o grande jurista e filósofo da terra do saroio, Tobias Barreto, emitia, em tom de desabafo, suas impressões sobre o atávico atraso nacional; em um ensaio filosófico intitulado “ Sobre a filosofia do inconsciente” abre espaço para uma diatribe que diverge do tema, dizendo: “ O Brasil padece de uma espécie de prisão de cérebro: tem peçonha no miolo. É preciso sujeitar-se  à dolorosa operação de crítica de si mesmo, do desapego, do desdém, e até do asco de si mesmo, a fim de conseguir uma cura radical.” Além do desabafo raivoso, há a importante observação de Tobias Barreto para a necessidade de elaboração histórica e cultural como passo fundamental para o desenvolvimento de uma nação; indica ainda que o mal-estar cultural não deve ser negligenciado nem varrido para debaixo do tapete da história. Tobias e Sílvio Romero, polemistas irascíveis, lutavam –– eivados de preceitos positivistas –– contra a intelectualidade tropical “festiva” que proclamava a grandiosidade nacional; um exemplo se dá quando Tobias Barreto, em outro ensaio, defende o livro “ A filosofia no Brasil”, de Sílvio Romero, contra as posições do crítico Sousa Bandeira Filho que julgava desnecessário debater questões referentes ao atraso nacional. 
                Talvez Tobias Barreto e Sílvio Romero, como intelectuais oriundos da província mais remota e isolada, tenham  observado que o atraso pronvinciano seria corolário do retardo nacional. Contudo, suas biografias e polêmicas indicam que ambos, provavelmente, acreditavam que determinada modernização, ancorada em preceitos positivistas, poderia tornar o país grandioso.O isolamento permite certa distância que facilita a observação de um fato, porque dificilmente se pode tomar uma opinião mais consistente quando se está imerso em determinado acontecimento. Desse modo, o isolamento próprio ao microcosmo da província gera certo ceticismo ou um preciosismo inconteste que se regala no “ narcisismo das pequenas diferenças”, exaltando as características locais de  modo irreal; –– por exemplo, na terra do saroio,  há a repetição a torto e a direito da falaciosa qualidade de vida de sua capital.
         
              A mentalidade provinciana entende sua cultura como produto exótico a ser explorado pelo turismo ligeiro ao invés de considerá-la fato consistente para o desenvolvimento de seu povo. Outrossim, a mentalidade provinciana entende as artes no plano do diletantismo, do amadorismo, ou como apanágio da história local que sempre deve ser enaltecida. O fascínio provinciano é captado pelo progresso meramente estrutural, pelos títulos, pelo “ discurso de bacharel”, pela designação de doutor que tanto inebria o brasileiro. Machado de Assis aborda esse fascínio tropical pelos títulos e honrarias em “ Teoria do medalhão”; pequena narrativa na qual descreve um pai que ensina o filho a se dar bem na vida, cultivando a bajulação e a falta de originalidade; orienta, ainda, que evite ter ideias, pois elas podem se tornar um obstáculo à ascensão social. Nesse sentido, o crítico literário sergipano João Ribeiro –– em um ensaio sobre um romance de Lima Barreto –– declarou, em meados do século passado, que o Brasil era o país do “arrivismo” e do culto à falta de originalidade –– meios úteis para se alcançar o triunfo nos trópicos. 
              Algo de sumamente revelador, acerca do caráter tropical e provinciano, é delineado nessa curta narrativa machadiana; nela está descrita a mesquinhez provinciana ante o incentivo ao novo e à inventividade característica de nações avançadas; também nela está descrito o encantamento por títulos, cargos etc. Nelson Rodrigues  insistia no júbilo que o brasileiro sente ao ser chamado de doutor ––  êxtase da ordem de um título nobiliárquico. Possivelmente o que Nelson e Machado apontavam no caráter tropical seja visível, e risível, no microcosmo  provinciano onde há a notória patetice das aspirações medianas que sufocam a inventividade. O “ estado de mendicidade espiritual” tupiniquim encontra no isolamento –– próprio ao rincão do saroio –– matizes mais acentuados
                Esse “ estado mendicidade espiritual” proporciona espaço a um ímpeto desenvolvimentista apenas atrelado à forma e ao avanço estrutural, desdenhando a consideração pelo avanço educacional e humanístico.  O sentimento de grandiosidade que infla o peito e  o orgulho da  “brasileirada” acolhe bem esse ímpeto desenvolvimentista. 
                  Porém, Tobias Barreto, o caga-raiva genial, apontou a necessidade de elaboração do atraso cultural que vai além do mero ataque à produção cultural local como forma de escárnio –– ataque que mascara certo revanchismo falhado, frustrado. Talvez a “ cura radical”, proposta por Tobias Barreto, seja possível pelo ato de digerir tradições e “maldições indígenas” em novas produções culturais, evitando o perigoso e imbecilizante desconhecimento de lacunas e mazelas na história de um povo.


*psicanalista, psicólogo, membro do Instituto Freudiano de psicanálise (IFP- SE), coordenador no Grupo Despertar(DESO) de dependência química, colunista do Cinform Online (site) de julho de 2010 a dezembro de 2011. 





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