Por: Andrei Albuquerque*
A Regina Haddad
De ato desmedido, impensado, a anseio mórbido, o suicídio provoca aos que ficam um vácuo pesado como uma bigorna, porque comporta uma inflexão agressiva à família, à sociedade etc. Obviamente descrito como afecção psíquica, o autocídio perde seu sentido trágico, que se encontra além de qualquer valoração moral ou consideração de pusilanimidade existencial.
Presente, cooptado, em diversas entidades clínicas o suicídio não adquire o status de mal psíquico independente; veremos sua manifestação em quadros depressivos, nas psicoses, e em estados de angústia em paroxismo como fruto de um ato irrefletido, impulso avassalador, visando cessar a dor subjetiva insuportável. Quanto ao que se pode denominar como anseio mórbido pela própria morte, encontrar-se-á, precisamente, na melancolia –– a depressão profunda. Tal anseio seria da ordem de um cerimonial esmerado, acalentado, ante a insuportabilidade, o fastio, o peso, de se gozar a vida em suas limitações.
Célebre estudo, contrapartida à catalogação nosográfica, ‘O suicídio’ (1897) de Durkheim investiga as causas sociológicas e culturais para o ato de se matar, criticando a consideração psiquiátrica que julgava os suicidas como loucos –– Esquirol, psiquiatra francês, via o suicídio como ato de alienado. Evidente que psicóticos cometem suicídio em seu flagelo delirante, mas reduzir o sentido trágico do suicídio até tomá-lo apenas por ato tresloucado é solapar sua conotação subjetiva e até cultural.
No Japão feudal havia o ritual chamado Seppuku, popularmente conhecido como harakiri, que significa “cortar a barriga”, realizado pelos samurais como medida última para recuperar a honra maculada. O Seppuku consistia em um ritual preciso e legitimado no qual o samurai se matava na presença de outros –– o corte, o harakiri, era padronizado. Caso em certas circunstâncias o samurai derrotado em uma guerra não quisesse se submeter ao ritual, era considerado um ronin, um samurai desonrado.
O ritual do Seppuku evoca uma situação de difícil apreensão para a cultura ocidental, mas seria leviano tornar patológico o que em determinada civilização foi fato social aceito, legitimado. Atualmente, o Japão apresenta altos índíces de suicídio combatidos pelo governo. Relevante notar que o suicídio melancólico, em seu anseio mórbido, apresenta ritual, cerimonial, não socialmente construído como no seppuku, mas individualizado, subjetivo.
Considerar o autocídio somente sob a perspectiva sociológica traria o impasse ante tragédias pessoais que não se ajustam a essa perspectiva. O suicídio devido a um ato de desespero e o suicídio melancólico, mórbido, escapam a uma justificativa grupal, tendo sua própria lógica. Explicar o suicídio, em seu anseio mórbido, devido a injunções sociais é perder o sentido do ato cometido por Emma Bovary, personagem do romance ‘Madame Bovary’ (1857) de Gustave Flaubert, que por insatisfação acerba em seu casamento toma arsênico.
E é de lembrar o impulso desmedido de Ofélia, em Hamlet de Shakespeare, que se afoga por desespero amoroso. Um Werther cabeçudo, lânguido, continuará a habitar as páginas dos jornais, as línguas ferinas, e o vazio amargo que talha os que ficaram. Werther, personagem de ‘Os sofrimentos do jovem Werther’ do escritor alemão Goethe, mata-se por não consumar seu amor por Charlotte.
Freud, ao analisar a melancolia, entendia o ato do suicida como um “homicídio” um ataque ao mundo que tombava sobre o ”eu” do melancólico, buscando o efeito de um afastamento, de um alívio desditoso. Para a psicanálise o suicídio não é um ato aguerrido de liberdade, senão atestado de aprisionamento ao outro tornado monstro – incapacidade de bem-dizer a vida.
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*Psicanalista, membro do Instituto Freudiano de Psicanálise(ifp) e Coordenador Adjunto do Programa Despertar (alcóolismo e toxicomania) na Deso. asralbuquerque@yahoo.com.br
texto extraído de http://www.cinform.com.br/blog/Andreialbuquerque às 20:51 em 23 de setembro de 2010
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