quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Antropologia como texto: relações entre o “Estar Lá” e o “Estar aqui”

Por : Debora de Jesus Lima Melo *


Clifford Geertz é considerado o fundador de uma das vertentes da Antropologia, a Antropologia Interpretativa, a qual tem como uma de suas características a leitura das sociedades como textos ou como análogas a textos.

No livro Obras e Vidas: o antropólogo como autor a discussão recai sobre a etnografia enquanto um trabalho mediado entre os dois âmbitos relacionados com a sua construção : o “estar lá” e o “estar aqui”, isto é, o âmbito da pesquisa de campo, e o âmbito acadêmico. Como compatibilizar o mundo do campo com o mundo acadêmico é a questão problematizada no livro.

No capítulo “Estar lá: a antropologia e o cenário da escrita” Geertz apresenta, inicialmente, as objeções destinadas à concepção da etnografia enquanto “espécie de escrita”, estas concordam com a idéia de que o caráter literário atribuído aos textos etnográficos não se constitui em uma preocupação preponderante, uma vez que o trabalho de etnógrafo é “ir a lugares, voltar de lá com informações disponíveis à comunidade especializada” através de textos “simples e despretensiosos” que não sejam “um mero jogo de palavras, como se presume que sejam os poemas e os romances”.

O sentido para tal temor reside, segundo Geertz, no fato de que compreender o caráter literário da antropologia colocaria em risco a defesa de que os textos etnográficos convencem pela simples abundância de seus detalhes culturais. Entretanto, o crédito dado aos antropólogos pela extensão de suas descrições não se sustenta. O critério de verdade reside menos na aparência factual, ou no ar de elegância conceitual. O convencimento está no fato de haverem realmente estado lá.

Diante disso, descobrir como o convencimento é criado fornece os critérios para o julgamento do trabalho. “A crítica dos escritos antropológicos deve brotar de um engajamento com eles, e não de pré-concepções sobre como deve ser a antropologia para se qualificar como ciência” (pg. 17).

Assim, apresenta a questão “o que vem a ser um autor na antropologia”. Para responder a esta Geertz, toma como referência a distinção dos campos de discurso apresentada por Foucault, a saber: o da função-autor e o da ciência. Na análise de Foucault, os discursos literários passaram a ser aceitos somente quando eram dotados da função-autor. Desse modo, Geertz conclui que na antropologia, salvo exceções, “os nomes das pessoas são ligadas a livros e artigos e, mais ocasionalmente, a sistemas de pensamento”. Sendo assim a antropologia está praticamente toda do lado dos discursos literários.

Com relação a isso surgem as seguintes questões: “Como se evidencia no texto a “função-autor”? De que o autor é autor?”. A primeira questão é chamada de “questão da assinatura”, isto é, a construção de uma identidade autoral. A segunda refere-se a “questão do discurso”.

A questão da assinatura tem sido colocada na etnografia de forma disfarçada, apresentada como um problema de ordem epistemológica e não de ordem narrativa, isto é “O texto é apresentado como decorrente das complexidades das negociações entre o eu e o outro e não entre o eu e o texto”. A dificuldade reside na “estranheza de construir textos ostensivamente científicos a partir de experiências em grande parte biográficas” (pg. 22).

Observa-se assim, a oscilação, nos textos etnográficos, entre o “olimpianismo do físico não-autoral” e a “consciência do romancista hiperautoral”.

A segunda questão (a do discurso) é apresentada em diálogo com Foucault e Barthes. O primeiro faz uma tipologia de autores: aqueles “a quem a produção de um texto, um livro ou uma obra pode ser legitimamente atribuída – produtores de textos particulares” e aqueles “de peso bem maior, que são autores de muito mais que um livro, mas de uma teoria, uma tradição – produtores de discursividade” (pg. 31).

Barthes formula a distinção nos termos: escritor e autor. Um escritor produz um texto, exerce uma atividade, sendo comparado a um escriba. Já um autor produz uma obra, cumpre uma função, participa analogamente do papel de sacerdote. Para um autor “escrever é um verbo intransitivo”, enquanto que para um escritor “escrever é um verbo transitivo”.

Os antropólogos, ainda parecem inclinar-se entre as duas distinções. “A incerteza que aparece, em termos de assinatura, como um até que ponto e de que maneira invadir o próprio texto. E, aparece, em termos do discurso, como um até que ponto e de que maneira compô-lo imaginativamente” (pg. 35).

Do trabalho de campo, isto é, da experiência do “Estar lá” que, segundo Geertz, refere-se a uma experiência de cartão postal, emerge outro ponto, que será discutido no capitulo seis: “Estar aqui: de quem é a vida, afinal?”. O que se coloca em pauta neste ponto é a discussão do Estar aqui, como âmbito que produz o antropólogo, que “faz com que o texto antropológico de alguém seja lido... publicado, criticado, citado e ensinado” (pg.170).

Neste sentido, a questão formulada refere-se às transformações ocorridas tanto no mundo estudado quanto no mundo acadêmico. Tais transformações são fruto das novas maneiras assumidas pelo mundo depois do colonialismo e do permanente processo de globalização. “O fim do colonialismo alterou radicalmente a natureza da relação social entre os que perguntam e observam e os que são perguntados e observados” (pg. 172).

Geertz apresenta a confusão entre, diante destas transformações, o objeto e o público. Isso faz com que os antropólogos se questionem: “Quem deve ser convencido? E convencidos de quê?” (pg.174).

A cena antropológica passa a ser permeada pela desconfiança, pelo mal-estar, já que a “se começa a olhar para os textos de etnografia, além de olhar através deles, e se percebe que eles são construídos para persuadir aqueles que os produzem passam a ter mais porque responder” (pg. 181).

Assim Geertz pergunta qual a razão para se fazer antropologia hoje, dando como resposta o seu caráter de servir de comunicação entre os grupos que são forçados a convivência cada vez mais cotidiana.

Isso envolve ainda a capacidade de convencimento, de que o que eles estão lendo é um relato autêntico, escrito por alguém que Esteve Lá. Isso evidencia, assim, o vínculo textual entre as facetas do Estar Lá e do Estar Aqui da antropologia, a construção que é imaginativa, que se adapte ao algo novo que emerge no mundo do campo e no mundo acadêmico.

REFERÊNCIAS

GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas: o antropólogo como autor. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.

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*É mestranda em Ciencias Sociais, na Universidade Federal do Maranhão (2009). Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual do Maranhão (2008), atuando principalmente nos seguintes temas: Educação e Questão étnico-racial.

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