O ensaísta alemão Enzensberger cunhou o termo "guerra civil molecular" para caracterizar a situação de violência múltipla que se espalha nos centros urbanos. Em qualquer lugar e sob qualquer pretexto ela se manifesta. Pode ser fruto da ação de bandos ou de um indivíduo; de assaltantes, mas também de policiais; originar-se de uma intenção prévia ou resultar de uma reação desmedida. O motivo pouco importa, muitas vezes são coisas supérfluas, caprichos. Em todos os casos, entretanto, seu rastro é de destruição, medo e morte. O cotidiano das cidades vai se amoldando aos sinais desta nova guerra, sem exércitos e sem fronteira. Diante dela os governos pouco ou nada têm conseguido, ao contrário, suas truculentas, ineficazes e corruptas polícias têm contribuído enormemente para expandi-la. As cenas foram nos cercando em pouco tempo. Primeiro eram as notícias algo distantes que se repetem indefinidamente nos meios de comunicação, depois as que nos chegavam através dos amigos e conhecidos, as que são ouvidas nos ônibus ou em qualquer lugar da cidade, até um dia sermos atingidos em cheio. Certa vez fiquei impressionado com a notícia de uma menina alvejada próximo a uma estação de metrô, caída sem movimentos e utilizando o celular para dizer "Mãe, levei um tiro". Tempos depois, estava em um carro com amigos passando pela avenida Ferreira Gullar, por volta das 19h, e numa tentativa de assalto frustrada levamos um tiro e uma pedrada. Somente por pura sorte ninguém se feriu. No banco de trás uma criança de apenas dois anos perguntava espantada "Mãe, o que aconteceu?". No último 31 de julho me veria diante de algo ainda mais brutal e infame. Um amigo muito próximo, xará, Flávio Pereira da Silva, ex-professor de sociologia da UFMA, onde fez graduação e mestrado, e atualmente professor do Ceuma, estava ao telefone e dizia num choro desesperado "Flávio, avisa que eu levei um tiro e estou no Socorrão II". Motivo? Briga de trânsito. Uma camionete L 200, de cor bem distinta, algo como azul metálico, modelo antigo, é conduzida por alguém que se acha com licença para matar. Apressado e arrogante, a figura ainda incógnita não teve paciência numa situação comum no movimentado retorno da Forquilha, buzinou insistentemente e depois avançou o carro, batendo na traseira do Celta novo, comprado em meio a tanta dificuldade. Recebido com insultos, Flávio reagiu, mas terminou sendo covardemente atingido por um disparo efetuado de dentro da L 200. Era uma pistola com grande poder destrutivo, geralmente utilizada por policiais, sacada de um coldre sob a axila, acobertado pelo paletó. A caracterização leva imediatamente a pensar em alguém que trabalha na área de segurança - delegado, oficial, agente federal, os tipos são vários. A poucos metros, um trailler da PM, que mais parece peça de decoração, onde dois policiais com uma viatura assistem a tudo sem se mover, não tomam nenhuma providência, não buscam contato, nada, para deter o atirador em fuga. A bala que o atingiu, de tipo especial, entrou pelo ombro, bateu numa costela e desceu para se alojar na coluna, mas em seu trajeto perfurou o pulmão e fragmentos alcançaram uma vértebra, causando imediata paraplegia. A placa repassada pelos policiais militares é fria ou foi anotada errada. Segundo a ironia amargurada de um amigo comum, enquanto a viatura "escoltava" o Celta rumo ao hospital, dirigido pelo transeunte que prestou socorro e onde Flávio se encontrava, colocado sentado na poltrona do carona, o motorista da L 200 escapava tranqüilamente do flagrante. Os policiais não tiveram sequer cuidado com a vítima, que perdeu os movimentos nos membros inferiores assim que levou o tiro e necessitava de cuidados na remoção. Agiram sempre da forma mais anti-profissional possível.
15 ago (1 dia atrás) A tragédia se completaria uma semana depois, quando complicações agravadas pela péssima estrutura médico-hospitalar do Aliança, para onde havia sido transferido ainda no dia da ocorrência, levaram à sua morte. Na sucessão de casos em que vamos afundando, o medo se impõe como marca do cotidiano. Não importa mais se é dia ou noite, local aberto ou fechado, nas calçadas ou nos veículos, qualquer um se acha no direito de constranger, fazer o que quiser e resolver tudo à bala. O assassinato como forma de prevalecimento da vontade. A arma servindo de diferencial básico na relação social. O covarde que atirou em Flávio comunga dessa convicção, a de ser o infrator, criar a situação de conflito e resolvê-la com a eliminação do oponente. Ao apontar a pistola do alto da camionete, ele teve a opção de atirar ou não, e o fez friamente. Deve estar acostumado a matar. No caos que se aprofunda na segurança pública do estado, este é mais um caso explosivo, onde um possível agente da segurança torna-se agente da guerra. Pode ser apenas suposição. Mas esta é uma pergunta que a Secretaria de Segurança precisa responder rapidamente: Quem matou o professor Flávio Pereira?
por: Flávio Reis (16/08/07)
Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA
por: Flávio Reis (16/08/07)
Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA
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